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Comportamento

Manifesto Cluetrain, 26 anos depois.

Todo mundo conversando. Quem está ouvindo?

Há alguns dias, já falei sobre isto por aqui. Mas ainda tenho algumas coisas para colocar. Em 1999, quatro pensadores da era digital — Rick Levine, Christopher Locke, Doc Searls e David Weinberger — publicaram um documento provocativo, quase profético, intitulado Manifesto Cluetrain.

Ele surgiu no alvorecer da internet comercial, antes do Facebook, Twitter, WhatsApp ou TikTok. Mas mesmo naquele tempo, algo já estava muito claro para seus autores: a maneira como as empresas se comunicavam com o público precisava mudar — radicalmente.

Os mercados são conversas.

O Cluetrain se organiza em 95 teses, escritas em um tom direto, quase rebelde, lembrando os manifestos modernistas ou até mesmo os murais de protesto. A primeira tese é também seu coração conceitual:

Os mercados são conversações..

Isso significa que, com a internet, consumidores deixaram de ser apenas receptores passivos de mensagens publicitárias. Eles passaram a falar entre si — e com as marcas — em tempo real, em tom humano, espontâneo, muitas vezes crítico.

Outras teses reforçam esse espírito:

  • 3. As conversas entre seres humanos soam humanas. Elas são conduzidas em uma voz humana.
  • 62. As intranets corporativas tendem a se tornar versões mais intensas da internet. As organizações que não entendem isso acabarão extintas.

Esses fragmentos evidenciam uma crítica à linguagem corporativa opaca e impessoal que dominava o marketing e as relações públicas até então. O manifesto clama por transparência, diálogo, escuta ativa e conexão genuína.

O que o Cluetrain acertou?

Muitas das predições do manifesto se concretizaram — algumas de forma até mais intensa do que se imaginava em 1999. Veja alguns acertos:

  • Redes Sociais como arenas de mercado: Facebook, Instagram, Twitter/X e TikTok tornaram-se lugares onde consumidores falam, recomendam, criticam, viralizam ou cancelam marcas em minutos. Hoje, empresas precisam monitorar essas conversas e, muitas vezes, agir rápido para responder ou se reposicionar.
  • A voz humana virou regra no marketing digital: A formalidade deu lugar ao tom de conversa, com linguagem mais próxima, memes, reels, emojis e até erros intencionais de português. As marcas que falam “como gente” engajam mais.
  • Transparência e responsabilidade: Cresceu a cobrança por empresas éticas, com posicionamentos claros sobre temas como sustentabilidade, diversidade e direitos humanos. O marketing virou também um campo de disputas morais e políticas.
  • Funcionários como embaixadores: A tese 47 dizia: “Quanto mais cedo as empresas perceberem que seus funcionários são sua primeira audiência, melhor.” Isso se tornou real com a ascensão dos funcionários-influenciadores, que falam sobre seu trabalho nas redes, impactando diretamente a reputação das organizações.

Onde o Cluetrain falhou ou foi ingênuo?

Apesar de sua potência visionária, o manifesto também teve suas inocências — talvez compreensíveis para quem estava deslumbrado com o potencial libertador da internet.

  • Nem toda conversa gera valor: A tese 12 diz que “não há segredos. O mercado em rede sabe mais do que as empresas sobre seus próprios produtos.” Mas a realidade mostrou que desinformação, boatos e fake news também circulam em redes — muitas vezes com mais velocidade que os fatos. As conversas nem sempre são esclarecedoras ou construtivas.
  • A cultura da transparência virou moeda: O ideal de autenticidade foi, em muitos casos, cooptado. Hoje, empresas aprendem a performar vulnerabilidade e empatia como estratégia de marketing. O discurso “humanizado” nem sempre é sincero — e consumidores já percebem isso.
  • A ilusão da descentralização: Os autores previam uma internet mais distribuída e participativa. No entanto, assistimos à concentração do poder em poucas plataformas (Google, Meta, Amazon), que monetizam nossas conversas e algoritmizam os mercados.

Cluetrain hoje: ainda vale a pena ler?

Sim. E talvez mais do que nunca.

Num momento em que a inteligência artificial está transformando a produção de conteúdo e em que a confiança nas instituições está abalada, revisitar o Manifesto Cluetrain é um convite para refletir sobre o que ainda pode ser recuperado da promessa original da internet: o poder do diálogo, da escuta, da rede de pessoas e ideias.

Ao reler as 95 teses, é impossível não perceber que — apesar das distorções e da complexidade do mundo atual — o espírito de 1999 ainda ecoa: gente gosta de conversar com gente, não com robôs ou burocracias.

E você? Sua marca ou projeto está participando de conversas reais — ou ainda está gritando sozinho num megafone corporativo?

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